O RETORNO DA INVENÇÃO DO DISCO

O objeto artístico e sujeito social em questão

A “escuta” é uma prática cultural e uma experiência estética
(Sophie Maisonneuve, Paris 2009)
Qual a dimensão estética na forma de reproduzir música na virada do século 19 para o século 20?



















A- O cilindro foi achatado

A escuta é um objeto científico recente, portanto jovem. Este objeto relaciona socialmente o ouvinte - o intérprete - e a obra quando o ouvinte se julga preparado, advertido e conhecedor. Durante os anos 1960 e com a maturidade do disco, a escuta está na frente de uma música renovada.

B- O tempo de um disco

Com advento do disco de Emile Berliner, a música foi retalhada em faixas de tempo predeterminado.com pausas necessárias com a troca ou manipulação da máquina falante. A troca do lado do disco, a troca da agulha do gramofone e a alimentação da corda na caixa de rotação são elementos novos na cultura do ouvir música. Este gesto de ouvir determina um espaço novo e fechado no ambiente doméstico, levando gradativamente a escuta como um gesto social, quase solitário e não mais comunitário e reservado a eventos públicos em ar livre ou em salas de concerto por encomenda e destino um público burguês. O ouvinte do século vinte se diferencia definitivamente do ouvinte do século 21. O som numérico é um som limpo, sem interrupções e sem contraponto de um ruído mecânico. O antigo ruído do objeto físico é substituído pela intangível nulidade do ruído digital. Com o acúmulo destas mudanças, o século 21 traz na escuta um fenômeno puramente estético e individual.

Com o disco dos anos 1920 se inventa também a faixa musical. O disco original que gira à 78 RPM, tem uma reserva técnica de poucos minutos o que aumenta a popularidade de um mudo mais apressado e com o tempo retalhado entre trabalho, cultura e lazer. Nasce portanto o gesto de ouvir a música achatada e retalhada tal como se faz com o advento do alimento enlatado tal como a cerveja e a sopa, ambos enlatados e conservados em prateleiras. A música é retalhada, classificada e organizada em prateleiras tal com fichas de controle e/ou registro de documentos em arquivos e forma de bibliotecas e acervos.




C- Os equívocos técnicos e os valores estéticos do disco são reinventados

O disco pós-cilindro do Thomas Edison também gira e com o mesmo gira uma imagem visível e estampada no centro de um disco. Este objeto em revoluções não se entrega para os museus apesar das suas inúmeras falhas nativas. O disco de Emile Berliner é um cilindro achatado que traz o erro da velocidade de leitura irregular e continuamente variável com todas as suas consequências técnicas que refletem na qualidade comprometida por “não linearidade" nos fatores qualitativos da informação sonora. Estas limitações não se observam desde uso de fitam magnética na gravação mestra e original em uso desde a década de 1950. A matriz está na informação intrínseca ao método aplicado à engenharia de gravação apenas, As matrizes em suporte magnético trazem hoje uma segurança de qualidade inexistente no disco reproduzido a partir desta mesma matriz.




D- Uma mídia multi facetada que foi pré história do disco compacto

O disco de Emile Berliner evoluído para o Long Play dos anos 1960 é reconhecido ao girar de forma sincronizada com o tempo musical, um sincronismo observado, desejado e manipulado pelos engenheiros de áudio na mesa de edição. A obra musical então se mescla com a arte da engenharia de edição e da escuta . Nos anos 1960, engenheiro de edição se distancia do artista autor da obra musical, para criar efeitos estéticos e musicais complementares, nasce a arte de edição e da embalagem da obra musical com o crescimento do design industrial e gráfico. A música então se reedita, se embala e se distribui em lojas especializadas em partituras até supermercados e lojas de conveniências.

Um exemplo desta manipulação e recriação da música de estúdios tem seu ápice na cultura pop com a advento do álbum Sgt. Peppers e com uma edição dupla e distinta em acervo original em duas versões, monofônica e estereofônica sendo que a segunda jamais teve o aval dos quatro Beatles mas apenas do engenheiro de edição George Martin. (She's leaving home em versão estéreo é acelerada em relação à versão original interpretada por paul Mccartney)




E- O quartz e o trio DDD

Anos depois na busca de uma ferramenta precisa para referenciar um tempo musical, o tempo mecânico é substituído por um tempo ressonante de uma caraterística física na ressonância elétrica do quartzo, abandonando definitivamente a manivela e a caixa de cordas. O quartzo equipa relógios de pulso desde a Suíça que também populariza uma mecânica totalmente minimalista sem caixa de corda. O relógio Swatch à Quartz equivale à popularidade acessível a todos na precisão de um relógio de pulso com preço reduzido à um décimo do valor do seu semelhante mecânico. O disco compacto tem na sua semelhança um micro motor cujo custo não alcança o equivalente à cinco reais e que por sua vez desempenha o necessário para movimentar o disco à uma velocidade não síncrona e que equivale a 250 RPM, ou seja oito vezes mais os 33 RPM do disco mecânico, sem nenhuma relação de ajuste ou referência com o tempo música, contrariamente ao disco mecânico de Émile Berliner. O quartz abre a porta de uma base de tempo imaterial para uma leitura definitivamente numérica codificada. A música do "streamer" já está pronta, codificada e carregada por uma "mecânica" portadora da informação, doravante chamada de música digital. nos primórdios dos anos 1980 nascem todas as virtudes do disco inquebrável, integro e puro teoricamente isento do “natural” ruído de fundo o que caracteriza qualquer manifestação sonora no mundo real. O numérico então sugere ao ouvinte as delícias de um universo sonoro também irreal e imaterial quando a necessidade da volta de uma referência sonora familiar e palpável se torna então necessária. Mas o trio DDD e por um bom tempo faz parte de um argumento mercadológico que sugere uma qualidade de um processo e não de um produto musical. E assim foi nos primórdios do disco compacto tres passo necessários para uma pseudo excelência da música gravada, na ordem: AAD, ADD e DDD significando para cada letra a opção que A significa o ultrapassado analógico e o D significa o virtuoso digital. Foi assim que honestamente as gravações eram ficadas e carimbadas por um selo qualificador para captura e registro da fonte musical, a necessária edição e finalmente a gravação mestra em arquivo dos editores.
O conceito “D” definitivamente rompe com o objeto disco mecânico limitado no tempo máximo aplicável ao registro sonoro por unidade do “produto disco”.
Na mente do ouvinte solitário prevalece a referência do seu tempo disponível para a audição hoje mais um ritual solitário do que social e volta então o desejo do retalho da música (clássica ou pop) em trechos compreensíveis e aceitáveis tal como são chamados de “faixas” para obras contemporâneas pop ou “highlights” com trechos de obras mais extensas e intensas. Com o advento do disco compacto para som e imagem (chamado de disco versátil), se enterra definitivamente o prático lado B do disco mecânico e da fita magnética. O único lado A do CD oferece ao ouvinte, um pouco mais que uma hora de música ininterrupta. Este tempo estendido multiplica por 20 o tempo limite do disco mecânico girando à 78 RPM. e a prioridade estética também é compactada visualmente para um quinto da área visual e deus accessórios como material rico em artes gráficas e visuais que são encomendados à especialistas que também complementam a “obra final” por sua vez, fisicamente compactada e inteligentemente denominada por “digipack”



E- O retorno promovido em celebrações temperadas e coloridas

Na segunda década do século vinte se festejam as grandes datas de produção de obras musicais e/ou de gravações que marcaram época. Artistas e suas obras passam por um rejuvenescimento, um certo “lifting” sonoro e uma farta documentação em formatos múltiplos e híbridos com a versão original do LP em melhor qualidade mecânica e sonora com suas capas e encartes preservados, e uma versão ricamente ilustrada e documentada com a obra principal reeditada e outros trechos recuperados dos acervos das grandes distribuidoras. Este modelo de produto rejuvenescido segue uma lógica de celebração de meio centenário de uma obra publicada tal como se fazem, diferentemente, celebrações de alguns séculos e suas frações para festejarmos a remota data de nascimento de um grande autor da música clássica ou simplesmente erudita.
Fotos, citações, e takes não antes publicados recheiam estes produtos rejuvenescidos.
Produções notórias no mundo do disco em LP de artistas como Dave Brubeck, Miles Davis, Ella Fitzgerald, Beatles, The Who e Rolling Stones são esperados para um pequeno público seleto e em venda direta pelos editores chegando a um preço 30 vezes maior do que o equivalente do preço ajustada para a época do álbum original. E o disco se transforma em "pacote" volumoso, incluindo diversos formatos com vinil, fita cassete e CD. Hoje o disco reinventado gira também nas cabeças de ouvintes de todas as idades passando pelos adultos já idosos e uma nova geração que tem nestes produtos dito clássicos, um passado imaginário irreal e herdado como um patrimônio cultural.

G- O discotecário e a discotecagem

O discotecário, vendedor ou colecionador possui um acervo muitas vezes sendo acervo de amor pela emoção da arte, do sensorial e afetivo e até mesmo do erótico. O gesto sobre o disco interrompido, acelerado. modificado e codificado caracteriza uma nova música ao qual se agregam novos atributos e valores estéticos ao acervo material e imaterial do LP que se torna componente de matéria prima de uma nova música onde não há pureza reconhecível, palpável ou desejável. A discotecagem em “trabalho de parto” se junto à imagens e performance onde, música e corpo se juntam em sincronismo coreográfico e sensato e ás vezes também erótico. Com a discotecagem passamos do estágio de ouvir música para viver música. Elementos sensoriais e corporais se fazem quase obrigatoriamente presentes á partir de um elemento básico que estimula a nova obra e seus autores. A volta ao real, ao palpável, ao sensorial compreensível e humano se torna uma prática neste século 21 desde seus primórdios. Do Jazz ao tango, o objeto “disco” reinventa o gesto corporal e social da escuta que até então foi migrando em ambientes fechado e exclusivamente sonoros oriundo dos meados do século 20 para uma escuta doméstica, desde a cozinha para a sala de jatar até o carro da família.



Gotan Poject - Vuelvo al Sur (Live) Eduardo Makaroff, Christophe H. Muller & Philippe Cohen Solal Nini Flores, Bandoneon Veronika Silva, vocals

H- Finalizando ou concluindo com o disco pulsante

O som impresso tem do seu formato físico um disco ou uma circunferência. O último elo de reprodução na cadeia técnica de elementos de reprodução sonora e musical é o dito “alto falante” que faz mais do que falar por ele canta e encanta com sua estrutura concebida e colorida de acordo que a arte que ele entrega através de um movimento de um disco pulsante. Esta seria a representação visual do elemento que mais perto chega ao nosso corpo, nosso intelecto e reações neurológicas e afetivas.



Sejam todos(as) bem vindos para uma nova leitura e apresentação sendo variação de um mesmo tema. O resgate da arte da música sempre universal, humana e sensorial.

Sami Douek em 23 de agosto de 2021











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